segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

O primeiro plantão


Para quem não sabe, os plantões da Gineco-Obstetrícia, no internato do HU, esteja na G ou na O, acontecem na sala de parto.

Meu primeiro plantão foi nessa quinta-feira. Bom, não preciso dizer o quanto assistir a um parto (óbvio que somente assisti a ele; ainda não estou preparada psicologicamente para o procedimento) foi uma experiência forte e, poderia dizer, traumatizante.

Juro que me perguntei inúmeras vezes o por quê de a história da cegonha trazer os bebês não ser realmente verdade. O bebê não queria sair, a mulher sem mais forças de onde ela pudesse retirar, o períneo se desfacelando enquanto o neonato saía, eu quase desmaio e ainda ouvi de uma pessoa do lado:"olha, que lindo, o milagre da natureza." Bem, eu não caracterizaria o que vi como lindo, e ainda acredito que mais milagroso seria se eles viesse voando embrulhados pelas cegonhas.

Bom, o que me marcou mesmo minha noite foi a presença de uma paciente DHEG. Na admissão, a residente do plantão nos orientou que ela era usuária de drogas e vítima de violência doméstica.
Conversar com a paciente foi uma experiência indescritível. Uma jovem, mais nova que eu, já havia engravidado outras 3 vezes (a primeira gravidez foi aos 13 anos), e tendo abortado todas as outras. Como sempre perdia os bebês, duvidou que dessa vez estivesse realmente grávida. Afirmou, que por duvidar da gravidez, continuou fazendo uso de álcool, cigarro, maconha, crack e mesclado (ou crackonha= crack + maconha) durante os 6 primeiros meses da gestação. Também referiu que no dia anterior o companheiro havia chutado sua barriga. E então, como manejar uma paciente dessas? Nunca vi num livro. Adiantará dizer que usar drogas faz mal a ela e ao bebê, bem como esse relacionamento dela é doentio e ela deveria por um fim nisso. Até que ponto isso ajudará a ela? A consciência de muitos, talvez. A mim?Não me é suficente para sair feliz como se nada houvesse acontecido e simplesmente esquecer, do tipo de "bem, fiz a minha parte". Eu não poderia pensar jamais desse modo porque sei que NÃO fiz.
Nesse final de semana li um texto de Moreno sobre moral, o que me fez refletir sobre esse momento vivido.
Essa moça, pertencente ao lumpem proletariado, segue sua vida permeada pelos costumes e pela moral lumpem. Sendo a moral lumpem caracterizada pela vida no presente, sem planos, individualistas. A busca pelo prazer espontâneo, os pequenos furtos, a vida nas ruas, à luz da moral burguesa, de fato, parece terrível. Como alguém pode ser capaz de ter esse tipo de atitude? Como pode ela não perceber que está acabando com a própria vida e a de seu filho?!
Esses questionamentos fariam sentido se essas pessoas estivessem inseridas no mesmo contexto sócio-econômico que o nosso (ou que se virem aos existencialistas, então). O lumpem, caracterizado como a parte da população que está a margem do sistema capitalista, conseguindo chegar, no máximo, à exploração alienada da venda de sua força de trabalho ao dono dos meios de produção. Ou seja, é quem vive por aí, de qualquer forma, os flanelinhas, prostitutas, catadores, moradores de rua. Vivem do presente, e é só. Almoçam sem pensar no jantar, pois já terem conseguido almoço; bem como com os relacionamentos afetivos e uso de substâncias. E o crack aparece como a droga que veio dizimar o lumpesinato. Uma droga acessível (custa cinco reais a pedra), com cachimbos improvisáveis, um "barato" interessante no sentido de "aproveitar o momento" e um potencial viciante ao extremo.

A droga também está inserida no contexto das classes 'elevadas'. A partir da quebra dos valores morais da burguesia, no status de capitalismo em decomposição, apontado de forma biológica por Freud, as drogas tiveram entrada fácil, a partir da idéia corrente de "aproveitar o presente" ou "a vida é curta", o uso de substâncias psicoativas torna-se mais corrente e justificado.

Aos existencialistas, em especial a Sartre, que por certo período pareceu uma figura bem interessante a meus e outros olhos, segue um trecho do livro de Moreno, que eu particularmente acho fantástico:

"Enquanto os lumpens são individualistas ao extremo, gozadores da vida e de todos os seus impulsos, vivedores do presente, que vivem optando 'livremente' negando-se a aceitar o mundo da necessidade, ainda que este termina sempre se impondo, os manda para a prisão ou incendeia a favela, diretamente, sem programa, sem linha expressa, são assim porque o são e basta; os existencialistas fazem um programa e uma filosofia desse amoralismo e individualismo. É sua miséria e seu calcanhar de Aquiles elevar a uma religião o que nos lumpens é sua vida. Por outro lado é muito profundo o processo porque reflete a lumpenização de setores da pequena-burguesia produzida pelas próprias crises da sociedade burguesa."

Enfim, a paciente segue estável, sem mais queixas de dor em baixo ventre. Nega STV ou perda LA. Refere náuseas e calores intensos pelo uso IV de Sulfato de Magnésio. A pressão continua elevada, BCF dentro dos padrões aceitos como fisiológicos, dinâmica uterina com 1/5/10. Conduta:

- Dieta para paciente com HAS

- Sulfato de Magnésio

- SSVV e CCGG

-Sobre sua condição de vida, redução dos riscos de violência física pelo parceiro e psicológica pelo uso de substâncias: NADA!

A medicina realmente tem impacto na vida de seus pacientes?..

Um comentário:

Anônimo disse...

texto poderoso.
acho que foi a primeira vez que achei que a doçura do rosa do pano de fundo incomodou...

bjo.
(bom vê-la escrever tanto!)